Nos territórios proibidos do Rio, um pastor caminha entre fuzis e narcos

Foto: Alan Lima
Por Mariá Martín

O pastor André Assis, de 45 anos, leva a palavra de Deus aonde o Estado não leva nem água nem luz: no coração das favelas do Rio de Janeiro. Tem os sapatos gastos de esquivar buracos nas calçadas e perde a voz pregando para adolescentes armados com fuzis e os bolsos cheios de cocaína. E reza para que um dia um desses jovens que baixa a arma ao vê-lo passar abandone essa vida e o siga. Eles só têm dois caminhos à frente: morte ou cárcere. O pastor quer ser a terceira opção.

É madrugada de sexta-feira em Costa Barros, um dos complexos de favelas com mais manchetes policiais do Rio de Janeiro. O pastor estaciona seu Fiat Uno caindo aos pedaços no pátio de um conjunto habitacional com vista para um rio fétido de esgoto. Uma porca recém dada a luz arranca do chão, silenciosamente, o pouco de verde que existe no caminho. Assis é seguido por três irmãos, todos de paletó e uma flanela cor de laranja para limpar o pó dos sapatos. Por alguns minutos, atravessando vários becos, o que se vê é um bairro morto, sujo e escuro, até chegar a uma quadra de basquete, onde se prepara o baile dessa noite. Já se ouve o funk. Várias adolescentes aguardam nos bares mais próximos ensaiando poses sexys diante das câmeras de seus celulares.

Um homem troncudo com uma pistola e um radiotransmissor na cintura e um jovem de chinelo abraçado a um fuzil cortam a passagem. O pastor não os conhece, mas os saúda e os convida para fazer uma oração. O homem da pistola acena com a cabeça e olha para o outro lado, mas o jovem larga sua arma, fecha os olhos e se agacha para que Assis ponha a mão em sua cabeça. Juntos, eles rezam, enquanto os auxiliares do pastor distribuem folhetos com orações. Despedem-se sem cerimônias, e o rapaz pega de novo o seu fuzil. O ritual se repete naquele que parece ser o coração do tráfico de drogas da favela. Os grupos de adolescentes ameaçadores que vigiam as ruas se desarmam diante do chamamento do pastor. Ninguém questiona ou se incomoda com a sua presença, nem tampouco com a da reportagem. O pastor representa a única autoridade - além de seus chefes - que eles respeitam. E temem.

Faz dez anos que Assis se movimenta pelo submundo do crime do Rio de Janeiro, onde uma pessoa morre assassinada a cada 80 minutos. Seu propósito de salvar almas do tráfico e do consumo de drogas começou nas prisões e acabou levando sua Igreja Assembleia de Deus Tempo de Restauração a territórios infranqueáveis, ali onde as autoridades só entram com blindados e disparos.

A travessia do pastor é ingrata. A fé de seus seguidores concorre com armas, mulheres, drogas e poder, mas, cedo ou tarde, alguns dos traficantes acabarão procurando ele. Jackson, um jovem de 23 anos, procurou Assis quando os seus próprios companheiros o condenaram à morte depois do desaparecimento de uma quantia significativa de dinheiro. Não foi ele quem roubou, mas ali onde impera a lei do tráfico a justiça é feita à bala, arbitrariamente. Jackson, que fumou o seu primeiro baseado aos oito anos e era um dos seguranças do chefe de sua favela, agora usa paletó, leva uma Bíblia na mão e segue os passos do pastor, procurando evangelizar as pessoas, tomando a si próprio como exemplo. Após fugir da sentença de morte, Jackson vai se casar e formar uma família, embora ainda viva no centro de recuperação onde Assis leva quem deseja segui-lo.
“Criei este lugar porque percebi que meu trabalho estava incompleto"

O Instituto Revivendo com Cristo é um local humilde, com um refeitório comunitário e quartos onde mal cabe uma cama. Neles dormem até 55 homens que trocaram as drogas e o crime pela oração. Aqui ouvem-se tiros ao outro lado do muro, mas ninguém se espanta, muito menos o pastor. Faz parte da rotina de Antares, uma favela paupérrima, a três horas de distância da praia de Ipanema –depois de pegar uma van, dois ônibus e um metrô.

Os alunos, como Assis chama seus pupilos, fazem jejum de purificação e, ajoelhados em bancos de igreja de costas para o que seria o altar, rezam todos juntos em voz alta. Para ganhar algum trocado, fabricam desinfetante concentrado e o vendem nas ruas enquanto pregam o Evangelho. E na hora de comer fazem uma fila militar, levantando as mãos e agradecendo a Deus aos gritos. O ritual arrepia. “Criei este lugar porque percebi que meu trabalho estava incompleto. Uma vez, numa das situações mais chocantes da minha vida, um traficante me chamou. Chorava e implorava que o tirasse dali. Não pude ajudar, não tinha aonde levá-lo”, conta o pastor.

O trabalho do pastor é mais uma demonstração da penetração das igrejas evangélicas nos lugares mais recônditos do Brasil, onde o catolicismo perde influência desde que deixou de sair às ruas para se refugiar nas sacristias. Em muitas favelas do Rio, que sangram com o recrudescimento da violência e a grave crise econômica, o gás, a água e a conexão de internet são distribuídos pelos traficantes, com pagamento de taxas abusivas. Aqui não chegam os técnicos da companhia de luz, tampouco há suficientes creches, nem bibliotecas, muito menos saneamento básico. Há, porém, um número cada vez maior de templos evangélicos. Nos últimos 40 anos, os evangélicos passaram de 5,2% a 22,2% da população, além de ter consolidado uma bancada parlamentar capaz de pautar a agenda do Congresso. “A igreja passou a ser um show, mas Jesus vivia no meio dos pecadores, das prostitutas, dos bandidos. E acredito que essa é a minha missão”, diz Assis.
"Fiz muita maldade com os outros. Vi muitas mães chorando por minha culpa"

Luiz, de 28 anos, também se aproxima para revelar sua história. Até duas semanas atrás, o demônio se manifestava através de seu corpo, adverte. “Quando tocávamos nele, rosnava como um animal e virava os olhos”, ilustra o pastor. Luiz agora tem o olhar perdido. Com 13 anos, sobreviveu a um acidente de trânsito em que perdeu a mãe e os irmãos. Seu pai, uma lembrança efêmera, só apareceu para buscar os documentos que lhe servissem para receber uma indenização. “Não dormiu comigo nem uma noite”, recorda com raiva. Luiz era uma presa fácil para o narcotráfico. Naquela época, a única coisa que ele fazia era cheirar cocaína. Matou gente, entre eles um estuprador, além de ameaçar e maltratar suas mulheres.

Perdido no vício, Luiz chegou a liderar um ponto de venda de drogas em sua favela - uma posição relativamente respeitada dentro do crime. Diz que ganhava 6.500 reais por semana, 20 vezes mais do que receberia hoje como pintor. Há um ano, a polícia entrou na comunidade onde traficava e atirou os seis disparos que agora ele mostra pelo corpo. Uma bala rasgou seu pescoço. Outra deixou-lhe um buraco na cabeça. Perdeu 10% de massa encefálica. Após se recuperar, procurou o pastor. “Fiz muita maldade com os outros. Vi muitas mães chorando por minha culpa. Antes não me importava com Deus, mas agora estou me fortalecendo”, afirma.
“Sou como uma garça branca. Vivo pisando no barro, mas nunca me sujo”

O trabalho de Assis tem seus sobressaltos. Vários grupos de traficantes armados que se dizem evangélicos estão destruindo, no Rio, os lugares de culto de religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé. A onda de intolerância, que já era preocupante, sai do controle ao contar com um braço armado. Dados de 2015 da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa indicam que o Rio lidera esse tipo de ataques, cujas principais vítimas são os fiéis das religiões de matriz africana.

Após as últimas agressões, uma antiga foto do pastor rezando com traficantes começou a circular nas redes sociais. Acusaram-no de promover a destruição dos santuários alheios. O pastor se desesperou e foi à delegacia para denunciar a injúria. “Acho que devem predicar, mas nunca usando a força ou a violência”, diz ele, convencido, de todo jeito, de que o demônio vive nessas religiões. Por via das dúvidas, Assis esclarece que seu trabalho é sustentado com doações e que nunca aceitou um centavo do crime. “Sou como uma garça branca. Vivo pisando no barro, mas nunca me sujo”, define. O pastor adora metáforas com pássaros.

De Costa Barros, Assis dirige durante meia hora até o enorme Complexo da Maré, outro território governado pelo narcotráfico, disputado diariamente a tiros por criminosos e policiais. São as 2h da madrugada, e parece que ninguém dorme. No meio da calçada, duas senhoras vendem vaca atolada em grandes panelas de alumínio, os feirantes preparam os postos para o dia seguinte, os bares estão lotados e as famílias, incluindo avós e bebês, assistem a movimentação nas portas das suas casas de tijolo.

Em cada esquina há grupos de adolescentes vendendo cocaína, maconha e lança-perfume. Os carros passam com as pontas dos fuzis saindo pela janela, e as motos com meninos armados para a guerra aceleram ao passar. Dependentes de crack perambulam como mortos-vivos nos becos mais escuros. Sorriem alheios à desgraça, enquanto duas viaturas policiais e seus respectivos agentes passam a noite estacionados a cerca de 200 metros da festa do crime. “Há uma barreira invisível, e todos sabemos qual é. Se a atravessam, bang, bang!”, provoca um dos líderes dos traficantes.
“O senhor acha que eu não quero sair desta vida? Que não gostaria de poder ir ao shopping com minha mulher?

É uma péssima noite para o pastor fazer seu trabalho. A festa, numa quadra esportiva oculta num beco, é regada a whisky Chivas 12 anos misturado com energético, e ninguém parece ter vontade de escutar a palavra de Deus. Os mais de 20 homens, exibindo armas e ouro no pescoço, nem sequer descem do camarote improvisado para ver o pastor. As mulheres, com decotes e vestidos apertados, sentadas todas juntas, estão ocupadas demais alimentando suas redes sociais.

Um homem na faixa dos 30 chama a atenção pelos dois quilos de ouro em colares pendurados sobre sua camiseta Calvin Klein, todos com imagens de Jesus e Nossa Senhora. É um traficante foragido da Justiça, tem uma arma na cintura e, como muitos deles, ora todos os dias. A reportagem indaga como é possível servir a Deus e, ao mesmo tempo, ser membro da maior facção criminosa do Rio. Ele escuta a pergunta, mas responde diretamente ao pastor. “O senhor acha que eu não quero sair desta vida? Que não gostaria de poder ir ao shopping com minha mulher? Se pudesse voltar 17 anos atrás, faria tudo diferente. Hoje não posso sair da favela, não sou um homem feliz, mas deixar essa vida é complicado”, justifica. Ele afirma que certas palavras, como as do pastor, mexem com ele. “Realmente tocam o coração, mas outra coisa é se entregar a elas”, afirma. “Quando conseguir estabilizar minha família, poderei sair. Agora, não.”

O traficante relata que foi “criado no Evangelho”, mas que matou sua primeira mulher pela “ânsia do mal”. De qualquer forma, diz, não dá um passo sem antes consultar Deus. “Outro dia me roubaram 100.000 reais, e eu tinha certeza de quem havia sido. Estava nervoso e pedi a Deus que me dissesse se era realmente quem eu pensava. Prometi que, se me ajudasse, não o mataria”, conta. No dia seguinte, acordou com a imagem do traidor na cabeça, o mesmo de quem desconfiava, e correu para ajustar as contas. “O cara começou a tremer e confessou. Havia gastado tudo, nem sequer podia me devolver uma parte. Mas cumpri minha promessa. Dei um tapa nele e fui embora.”
"Me sinto como aquele beija-flor num incêndio, que faz milhares de viagens carregando apenas algumas gotas de água no bico"

A festa nas ruas da Maré não termina. O aniversariante, também cheio de ouro no pescoço, mostra-se eufórico em pleno show de fogos de artifício. Rodeado por seus soldados, aponta o fuzil para o céu. Todos fazem silêncio. As famílias que olham da porta das casas procuram discretamente a proteção da parede. Após cinco rajadas de tiros estrondosos, ele solta um grito triunfal. O pastor decide ir embora. São 4h da manhã.

–Pastor, não fica frustrado?

–Eu não me iludo, mas sei que cada uma dessas visitas servirá para alguma coisa. Me sinto como aquele beija-flor num incêndio, que faz milhares de viagens carregando apenas algumas gotas de água no bico. Os outros animais da florestas riem dele, mas o beija-flor está fazendo a sua parte.

FONTE:  El País em 15/10/2017

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