Membro da Rede de Juventude Ecumênica resenha o Mapa da Intolerância Religiosa

GUALBERTO, Marcio Alexandre M. Mapa da Intolerância Religiosa – 2011: violação ao direito de culto no Brasil. Multipike, 2011. 154 p. Por Danielle Mozena[1] De maneira muito didática e de leitura agradável, Marcio Gualberto apresenta um material relevante para a discussão da intolerância religiosa no Brasil. Em seu Mapa da Intolerância Religiosa – 2011[2], o autor explora o contexto de intolerância religiosa sistematizando informações coletadas nos últimos dez anos de diversas tradições religiosas presentes na sociedade brasileira. Fala-se, inicialmente, de uma problemática teológica: o discurso das igrejas cristãs é carregado de uma tendência a explorar a eterna guerra entre o bem e o mal, cujo “mal” é geralmente personificado em outras expressões religiosas, tidas como tradições a serem combatidas. Este tipo de perspectiva é interessantemente nomeada no texto de teologia xenófoba, e especificamente em relação à intolerância religiosa às tradições afro-brasileiras, de afrotheofobia.[3] Como introdução ao tema de discussão e para situar melhor o leitor, é oferecida uma breve definição sobre intolerância religiosa, que segue como “perseguição religiosa que consiste numa constante e permanente desqualificação da religiosidade do outro, descambando muitas vezes para a ofensa em palavras ou até mesmo a agressão física”.[4] E observando os caminhos históricos da humanidade, percebe-se que os conflitos e episódios de intolerância religiosa sempre estiveram presentes. Por exemplo, houve a perseguição aos cristãos pelos judeus, cristãos estes, que por sua vez, quando se tornaram maioria religiosa, também passaram a perseguir judeus, muçulmanos e pagãos, atingindo seu ápice de intolerância com a Santa Inquisição. Já mais próximos da contemporaneidade e do contexto social e cultural brasileiro, até 1960 as tradições religiosas de matriz africana foram duramente perseguidas pela igreja católica, intolerância que também foi sofrida pelos evangélicos, que reproduziram o mesmo comportamento em relação aos católicos e outras expressões religiosas. Porém, ao se tratar de um tema tão delicado e complexo como religião, é necessário um duplo cuidado, pois muitas vezes aquilo que é considerado um comportamento intolerante é, na verdade, uma crítica à religião, crítica esta, vale dizer, protegida pela Constituição Federal que permite o direito à livre expressão, havendo aí, como diz o próprio autor, “uma linha tênue e delicada entre o que é crítica e o que é intolerância, cabendo, assim, extremo cuidado ao se expressar uma, para não cair na acusação de outra”.[5] Aliás, falando sobre Constituição Federal, o tema do Ensino Religioso muito tem a ver com intolerância religiosa, pois se por um lado esta disciplina pode ser palco para o desenvolvimento da tolerância, de outro lado também pode ser palco para proselitismos e a propagação de visões preconceituosas. Opiniões como a de Roseli Fischmann, professora de pós-graduação em Educação na USP, e de Guilhermina Rocha, coordenadora-geral do Sindicato Estadual dos Profissionais de Ensino (Sepe) problematizam o tema do Ensino Religioso nas escolas, questionando se a disciplina realmente é efetiva na contribuição para um desenvolvimento moral do aluno, já que além do Estado se considerar laico, a educação e bons costumes não vem necessariamente da religião.[6] Inúmeros episódios de intolerância religiosa já foram retratados pela mídia ao longo dos anos, episódios que Gualberto aproveitou para exemplificar a situação de intolerância vivida pela sociedade brasileira. Com casos menos freqüentes, porém ainda presente, o Santo Daime teve seu caso de intolerância quando o cartunista Glauco Villas-Boas e seu filho foram assassinados por um ex-membro da mesma expressão religiosa. Insatisfeito com a antiga religião e com um dos seus líderes – no caso, o cartunista Glauco – o homicida resolveu fazer “justiça em nome de Deus”.[7] A Igreja Católica também sofre muito com o quadro de intolerância, principalmente decorrente de pessoas de fé evangélica. As notícias mais divulgadas são as famosas quebras e vandalismos de imagens de santos em igrejas católicas, como por exemplo, o episódio da quebra de uma imagem da Nossa Senhora na Catedral Militar, em Brasília, no ano de 2004.[8] Além do vandalismo contra imagens sacras, há constantes debates iniciados por evangélicos com verdadeiro caráter de “combater” os feriados religiosos nacionais, majoritariamente relacionados à tradição católica.[9] Mas os evangélicos, apesar de parecerem vitimizadores, também são vitimados pela intolerância religiosa. O caso mais popular foi o de Marina Silva, candidata à presidência da república no ano de 2010. Evangélica, Marina confessou que o único preconceito sofrido por ela foi devido à sua confissão religiosa, cuja sociedade a fez carregar rótulos de conservadorismo. Isto é um reflexo da mídia, que geralmente retrata o meio evangélico como extremamente conservador, atrasado intelectualmente e corrupto, já que notícias de pastores imorais são frequentemente exibidas. Por conta dessas notícias, a população brasileira construiu uma imagem do evangélico relacionada à corrupção e à estupidez, o que é um caso grave de generalização e que repercute em muitas situações de intolerância.[10] No caso das Testemunhas de Jeová, há situações de intolerância externas, em relação a indivíduos de fora da comunidade religiosa, e de intolerância interna, entre os próprios membros que ameaçam sair da comunidade ou que já a deixaram, sendo desassociados (membros que foram expulsos) ou dissociados (membros que deixaram a comunidade voluntariamente). Em ambos os casos, tanto dos desassociados como dos dissociados, há uma forte ruptura de relações sociais e afetivas com os membros que permanecem na comunidade, sejam eles amigos ou familiares, transfigurando a vida social do indivíduo a caminho de uma verdadeira morte civil. Esta forma de intolerância provoca danos psicológicos fortíssimos, levando inclusive, em alguns casos, ao suicídio, já que a grande parte de seu círculo social – geralmente associado às Testemunhas de Jeová – o isola.[11] Os adeptos da fé islâmica, os muçulmanos, também sofrem muito preconceito religioso no Brasil, geralmente associados às figuras terroristas fortemente veiculadas pela mídia internacional e também pela mídia brasileira. Entre os muçulmanos que sofrem intolerância religiosa, as mulheres são os maiores alvos de agressões tanto físicas quanto psicológicas. Um dos casos relatados por Gualberto é de uma jovem de crença islâmica que ouvia risos e pessoas imitando barulhos de bombas quando ela caminhava na rua. Além disso, a própria jovem disse saber de um caso que uma colega teve até o véu arrancado na rua. Este estranhamento e preconceito em relação à figura muçulmana, com suas vestimentas características e seu padrão de comportamento é relacionado principalmente aos veículos de comunicação, que divulgam a imagem do Islã como uma religião retrógrada, violenta e opressora, o que não é verdade. Em muitos casos, principalmente em relação à opressão da mulher, os motivos são nacionais, e não religiosos, como especifica uma das notícias coletadas por Gualberto.[12] Entre os judeus, a intolerância religiosa vem também em forma de racismo, principalmente por grupos neonazistas e comunidades religiosas fanáticas, como o caso da comunidade Consciência Cristã, da cidade de Campina Grande, na Paraíba. Este grupo religioso estaria fazendo apologia à intolerância religiosa em seus discursos, contribuindo para um comportamento agressivo em relação a adeptos de outras tradições religiosas. Alguns judeus da região, entre eles David Menezes, reportaram casos de intolerância religiosa e diversos tipos de violência associados a este grupo religioso.[13] Os rastafari possuem um caso delicado, pois por usarem a erva Canabis sativa – ou maconha, como é popularmente conhecida – entram em conflito com a Constituição Brasileira por fazerem uso de drogas ilícitas. Como exemplo, houve o caso do músico rastafári Pedro “Pedrada”, preso por ter duas mudas de maconha em seu quintal. Pedro explicou que a “ganja” ? como é chamada a maconha entre os rastafari ? era apenas para uso pessoal e espiritual. Devido ao uso da maconha como erva ritual, os rastafari são comumente taxados de “maconheiros”, além de outras atribuições negativas, geralmente associadas à aparência física devido aos dreadloks, considerados “sujos”. De uma forma ou de outra, os rastafari, por serem um grupo muito pequeno e por não terem se organizado formalmente, se tornam especialmente vulneráveis a todo tipo de discriminação, principalmente porque sua visão espiritual não é muito divulgada, contribuindo para a ignorância e o preconceito da sociedade.[14] As religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, por exemplo, talvez sejam os maiores alvos de preconceito e intolerância religiosa no Brasil. São tradições religiosas que carregam o estigma do preconceito desde a época colonial, não necessariamente pela tradição religiosa em si, mas simplesmente por fazer parte da cultura negra. São inúmeros os casos agressivos em relação a essas tradições religiosas, demonizando-as e incumbindo a elas a fonte dos sortilégios e possessões. Um caso digno de nota foi o de Mãe Gilda, cuja imagem foi difundida num jornal da Igreja Universal em uma matéria desrespeitosa às religiões de matriz africana. Mãe Gilda recorreu à justiça, porém, antes do caso ser finalizado, faleceu no dia 21 de janeiro, data em que foi oficializado o Dia do Combate à Intolerância Religiosa pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva.[15] Menções sobre a cultura africana e as religiões afro-brasileiras em aulas de Ensino Religioso geram polêmica. O docente, ao oferecer um conteúdo que aborda as divindades e contos africanos, se torna alvo de intolerância e agressão psicológica por parte do próprio colégio empregador e também pelos pais das crianças, que não compreendem que a disciplina de Ensino Religioso não é espaço catequisador, mas espaço para ensinar outras culturas e tradições religiosas com o objetivo de desenvolver, entre outras coisas, a tolerância e a convivência fraterna do aluno com outras pessoas e meios sociais diferentes do seu, fundamentando-se nos princípios da cidadania e do entendimento do outro.[16] No caminhar da tolerância religiosa no Brasil, é essencial o diálogo com o Estado, que muitas vezes se torna um violador do direito ao culto ao reprimir algumas denominações religiosas e favorecer outras. O Estado brasileiro deve se sensibilizar para a situação da intolerância religiosa, sendo o apoio a quem as vítimas do preconceito podem recorrer sem o receio de serem banalizadas. O texto de Marcio Gualberto, como o próprio autor esclarece, não pôde contemplar todas as notícias e situações de intolerância no Brasil, mas apesar disso, oferece uma iniciativa e um mapeamento exemplar no estudo da intolerância religiosa no âmbito brasileiro, servindo inclusive como um guia em relação à legislação brasileira em referência à liberdade de culto e preconceito religioso. -------------------------------------------------------------------------------- [1] Geógrafa, Teóloga, mestranda em Ciências da Religião pela PUC-SP e participante da REJU-SP. [2] Também disponível em versão na Internet: http://www.mapadaintolerancia.com.br/ [3] GUALBERTO, Mapa da Intolerância Religiosa – 2011, p. 6. [4] Wikipédia, Apud, GUALBERTO, op. cit., p. 11. [5] GUALBERTO, op. cit., p. 13-14. [6] Cf. Ibidem, p. 22. [7] Cf. Ibidem, p. 41-45. [8] Cf. Ibidem, p. 49-50. [9] Cf. Ibidem, p. 55-58. [10] Cf. GUALBERTO, op. cit., p. 60-71. [11] Cf. Ibidem, p. 72-79. [12] Cf. GUALBERTO, op. cit, p. 80-89. [13] Cf. Ibidem, p. 90-100. [14] Cf. Ibidem, p. 101-106. [15] Cf. GUALBERTO, op. cit., p. 110-112. [16] Cf. Ibidem, p. 136-138. FONTE: Mapa da Intolerância Religiosa em 09/09/2011

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