Preconceito religioso inviabiliza inserção de jovens em projeto social


O curso preparatório gratuito para o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba), oferecido pelo Instituto Oyá, era para ter começado em março deste ano no Conjunto Pirajá. Mas uma campanha de lideranças evangélicas é o motivo apontado pela coordenação da ONG, ligada ao terreiro Ilê Axé Oyá, para a falta de interesse da comunidade. A turma para o curso, que na rede particular custa, em média, de R$ 120 a R$ 150 mensais, pode atender 30 alunos, mas, até agora, existem apenas 13 inscritos. “Nenhum deles é da comunidade. São de outros bairros”, aponta a coordenadora da ONG, Nívia Luz.
O problema vivido pelo Instituto Oyá, que, como outras instituições religiosas de matriz africana, insere programas sociais na comunidade onde atua, é mais uma faceta do preconceito, que pode resultar em casos mais sérios, como a intolerância religiosa,  considerada crime pela legislação brasileira.


O Instituto Oyá, que agora encontra problemas para viabilizar seus cursos, coleciona exemplos de jovens que mudaram de vida após passar por seus projetos. É o caso de  Even Paulo Moreira, 31 anos. Ele começou a participar do instituto com 9 anos, quando se inscreveu na oficina de percussão. Hoje, além de educador da ONG,  é diretor musical e regente do Cortejo Afro, onde comanda 200 percussionistas.
“Aqui aprendi a gostar de estudar, ser responsável e buscar sempre mais. Vejo jovens querendo participar, mas impossibilitados por conta da falta de informação dos pais”, disse.


É o caso de E.D.C, 17 anos, que vê o sonho de cursar automação industrial no Ifba mais distante. “Eu já conversei, mas minha mãe não pode pagar um curso, nem deixa eu participar. Acha que eles vão ensinar candomblé”, disse.


Já a mãe de Even, a evangélica Ocarlinda Garrido Moreira, 63, cede até a casa para concentração do Cortejo Afro no Carnaval. “No início, ouvia na igreja que lá não era lugar para colocar meu filho, mas não desisti e não me arrependo. Ele melhorou em casa, na escola e deixou de ficar na rua. Hoje tem currículo bom, é instrutor e está feliz. Sempre cuidaram bem dele”.


“No caso dessa ocorrência com o Instituto Oyá, a princípio, não há crime. As pessoas têm o direito de optar como irá orientar e educar os filhos. Quando há ofensa mais direta que configure a discriminação, podemos classificar como ação criminosa”, afirma o promotor de  justiça Cícero Ornelas.


Ele é o coordenador da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa do Ministério Público da Bahia, criada há 15 anos. Desde a sua instituição, a promotoria registrou 21 ocorrências de intolerância religiosa, que agora tramitam na esfera judicial.


Segundo o advogado Samuel Vida, quando há uma ofensa mais direta, o crime fica tipificado. “Uma externação do preconceito e com provas classifica a intolerância religiosa”, diz o advogado, que é coordenador do Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (Aganju).


Para o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), o problema para reunir provas é que a intolerância, assim como acontece com o racismo, muitas vezes ocorre por meio de subterfúgios. “Por isso é mais difícil reunir provas da agressão, mas isso é uma realidade”, afirma Monteiro. De 2009 até agora, a instituição catalogou 18 ocorrências.


O pastor da Igreja Batista Nazareth Djalma Torres, que tem um trabalho de referência na área do diálogo inter-religioso, lamenta a repetição de histórias semelhantes às vividas pelo Instituto Oyá. “O recomendável é que os líderes estimulassem a comunidade a apoiar qualquer projeto que ofereça benefícios a crianças e adolescentes, independentemente da religião. A intolerância religiosa é um crime perante a Constituição e um pecado diante de Deus”, diz.


Vitórias - A dona de casa Maria de Lourdes Gomes Andrade, 72 anos, conta que ouviu conselhos de membros da igreja que frequenta (e prefere não identificar) para não colocar a filha Letícia, de 11 anos, nos projetos da ONG. Mas ela resolveu ouvir a sugestão de uma outra “irmã” de igreja e matriculou a menina nas aulas de reforço e percussão do Instituto Oyá.


“Perguntavam como eu ia deixar uma menina da igreja entrar nesses lugares, mas viram que eu não ia tirar e pararam. Ela já está com notas melhores. Lá não ensina candomblé ”, disse ela, ressaltando a economia de R$ 140 que está fazendo por não precisar pagar aulas de reforço.


Mas a evasão nas oficinas do instituto continua alta. São 40 vagas ociosas dentre as 100 que ele tem capacidade para oferecer em todas as suas seis oficinas. “O número de alunos só faz cair, e o fator que mais influencia isso é o preconceito religioso. Fazemos acompanhamento dos alunos a partir de três faltas e percebemos que não há uma justificativa. Alguns pais dizem que o pastor fala que aqui não é lugar adequado”, relata a coordenadora do instituto, Nívia Luz.


Superação - Com 15 anos de atuação no desenvolvimento de projetos voltados para a comunidade, o terreiro São Jorge Filho da Gomeia, localizado em Portão, Lauro de Freitas, no início também enfrentou problemas semelhantes ao do Instituto Oyá. 


“A primeira oficina foi de capoeira. Era complicado, pois a maioria dos terreiros não trabalhava dessa forma. Mas, como faço o que as energias decidem, deu certo”, conta a líder religiosa do terreiro, localizado em Portão, mãe Lúcia das Neves.


Com o passar dos anos e a criação do bloco afro Bankoma, a realidade é outra. “O Bankoma também ajudou a ultrapassar a barreira e hoje temos alunos de várias religiões”, contou mãe Lúcia.


No terreiro, além das oficinas, funciona o Centro Digital de Cidadania (CDC) – único no bairro –, que atende 25 pessoas por dia. No projeto Pontinho de Cultura, 80 jovens aprendem dança e percussão. “Levamos essas atividades para as escolas, além de promover outros eventos, como mostra de filmes”, disse mãe Lúcia. O terreiro oferece oficinas de dança, capoeira, percussão e confecção de adereços. Mensalmente, pessoas que desenvolvem ofícios como o de rezadeira e pescador  são convidados para conversar com os alunos. “Agora estamos montando um biblioteca étnica”, diz mãe Lúcia. 


*Colaborou Luana Almeida


FONTE: Jornal A Tarde em 30/06/2012

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